27.9.15

CORONEL JOSÉ JULIO, A PERSONALIDADE MEGALOMANÍACA DA AMAZONIA

Coronel José Júlio de Andrade, personagem controvertido da história da Amazônia, montou um império envolvendo terras nos municípios paraenses de Almeirim e Porto de Moz, além de Laranjal do Jarí e Mazagão, no Estado do Amapá, conseguindo assim a distinção de ter sido um dos maiores latifundiários do mundo, com propriedades que atingiram mais de três milhões de hectares. O coronel Zé Júlio, como ficou conhecido, conseguiu a patente graças à compra junto a então Guarda Nacional. Foi senador da República por vários anos, sem nunca ter perdido uma eleição em Almeirim, onde ficava a localidade Arumanduba, sede de suas atividades. Ele conheceu vários países do mundo falando apenas o português, gabando-se de ter se banhado quatro vezes no Rio Jordão, onde João Batista batizou Jesus. Sua personalidade estava envolvido por uma aura de megalomania, tendo parte destas terras tornado-se propriedade de Zé Júlio no final do século XIX, o primeiro coronel a enriquecer extraindo e exportando produtos amazônicos. Ele ficou rico com o extrativismo e exportação de castanha, andiroba, borracha, o que era prática comercial corrente. José Júlio de Andrade nasceu em julho de 1862, em São Francisco de Uruburetama, no Estado do Ceará, chegando ao Norte aos 17 anos de idade, passando por Benevides, no Pará, onde trabalhou na agricultura, protegido por um tio que ali residia. A chegada do então desconhecido nordestino na região do Jarí ocorreu em 1882. Como muitos peões que ali viviam, Zé Júlio trabalhou como seringueiro e coletor de castanha, vendendo o que produzia para os regatões, embarcações muito comuns na época, cujos proprietários faziam comércio na região, adquirindo produtos em troca de gêneros de primeira necessidade e até de tecidos estrangeiros. É falado na região que o coronel mantinha o império dele com mão-de-ferro, praticando hediondos castigos àquele que se insurgia contra os seus interesses, utilizando capatazes e pessoas de confiança como executores. Duca Neno, cunhado de Zé Júlio, foi um dos mais cruéis destes algozes. O coronel, além de viver da extração da borracha, castanha e outros produtos, era também proprietário de frota de barcos e criava gado. José Júlio tinha apenas o curso primário e amealhou a sua fortuna em apenas 20 anos, em lances dignos de mérito, muitas das vezes, entretanto, através de métodos reconhecidamente “extravagantes”. Na verdade, ele precisou de um empurrão para se tornar rico. O sogro Manuel Maia da Silva Neno, intendente do município de Almeirim, lhe deu um título de propriedade, a partir do qual conseguiu terras e mais terras, favorecido por benesses de sucessivos governadores paraenses, de maneira que o império latifundiário tornou-se tão grande que o patrimônio da cidade de Almeirim ficou muito reduzido. Antes da ajuda do sogro, entretanto, Zé Júlio já tinha uma extensa área, na localidade Prazeres, à margem esquerda do Jarí, adquirida numa jogada de pura esperteza: trocou o terreno com linha de pesca, tecidos e mais algumas mercadorias. Zé Júlio percorreu palmo a palmo as suas vastas terras. Depois que viu que não poderia mais ser enganado, deixou capatazes tomando conta de tudo, dando-se ao luxo de passar a maior parte do tempo em viagens pelo Brasil e exterior. O coronel montou residência em Belém e no Rio de Janeiro. Ao Jarí ia apenas para reger o início e o término das safras. Entre as excentricidades do coronel está a de levar cunhãs (moças) do Jarí para servi-lo em suas residências em Belém e no Rio de Janeiro, apenas para embalá-lo na rede, embora dormisse em cama, tarefa na qual as garotas se revezavam dia e noite. Certo dia, no retorno de uma de suas viagens ao exterior, alguém lhe perguntou como ele se virava no estrangeiro falando somente o português. Respondeu de pronto: “Eu tenho um dicionário no bolso que me resolve problemas em todas as línguas”, mostrando a carteira de dinheiro. José Júlio de Andrade era amigo do jornalista paraense Paulo Maranhão e, como este, inimigo ferrenho do governador Magalhães Barata. O governador mandou um fiscal à Arumanduba e o funcionário público multou o coronel em dez mil contos de réis. Zé Júlio pagou a quantia e deu mais dez mil ao fiscal, dizendo: “Leve mais estes dez mil para o Barata acender o charuto dele”. Embora casado com Laura Neno, o coronel José Júlio de Andrade era homem de muitas mulheres, figurando Chiquinha Rodrigues entre as suas preferidas, a qual conheceu quando iniciou sua vida empresarial no Jarí. Mesmo assim não teve filhos e sua herança ficou para Maria Laura, filha mais velha de um sobrinho. O coronel morreu aos 90 anos no dia 24 de junho de 1953, no Rio de Janeiro, e está sepultado no cemitério São João Batista, daquela cidade. Cinco anos antes já havia se afastado por completo dos municípios de Almeirim, Mazagão e Porto de Moz. Vendera sua fazenda do Rio Aquiqui para Michel de Melo e Silva e a Jaripara para um grupo de portugueses. Rebelião contra o coronel José Júlio de Andrade, apesar do caudilhismo com que administrou a sua riqueza, uma vez, em 1928, viu-se em apuros diante de empregados e não teve saqueado os depósitos de mercadoria, propriedades suas em Arumanduba, porque recorreu ao poder de persuasão, o que, aliás, tinha de sobra. Trata-se do episódio titulado pelo escritor Cristóvão Lins no livro Jarí - 70 anos de história como “A revolta de Cezário”. Vitoriosa, a rebelião teve como principal troféu a prisão de Duca Neno, cunhado e um dos principais e cruéis capatazes do coronel. A revolta eclodiu porque Duca Neno assediou amorosamente a esposa do aviado José Cezário de Medeiros, um rio-grandense-do-norte que sabia ler e escrever muito bem, tendo, inclusive, passado pelo Exército, e que no meio dos empregados de Zé Júlio surgiu como um verdadeiro líder. Cristóvão Lins conta que a mulher de Cezário, muito bonita, adoeceu e precisou ir a Arumanduba, a fim de seguir a Belém, para tratamento. Uma versão diz que Duca Neno a colocou numa casa sem o mínimo conforto, tendo embaixo do assoalho um chiqueiro de bodes. A outra versão diz que Duca simpatizou com a hóspede e como a mesma não o quis, passou a massacrá-la para ver se conseguia o intento. Cezário recebeu uma carta da esposa narrando o que ela vinha passando nas mãos do capataz. O aviado, arquitetou a revolta que chegou a bom termo, inusitadamente, sem haver qualquer delação. O povo abandonou as casas e criações para seguir o líder. A revolta foi tão bem planejada e sigilosa que a filial de Pacanari, abaixo da Cachoeira de Santo Antônio, a uns cinco quilômetros de distância, só teve conhecimento da mesma quando o seu chefe, capitão Filomeno, foi preso por Cezário. Desde o dia 17 de junho, o jovem líder começou a reunir todo o povo em Cachoeira de Santo Antônio, à espera do navio que deveria chegar no dia 5 de julho, como aconteceu. De Cachoeira não saía ninguém e os que chegavam também ficavam detidos. Até a chegada do navio, Cezário ajustou contas com algumas pessoas poderosas na região, como o velho Monsão, chefe da filial de São João do Iratapuru, que antes da revolta havia ordenado que surrassem um rapaz, vindo este a falecer devido ao espancamento. O líder da revolta mandou prender Monsão e obrigou-o a cavar a sepultura do rapaz até chegar o caixão, para em seguida colocar a terra de novo na cova. Entre adultos e crianças, Cezário arregimentou aproximadamente oitocentas pessoas. Ao iniciar a revolta, o chefe da filial de Cachoeira, de nome Loureiro, foi preso. O navio Cidade de Almeirim, que quinzenalmente levava rancho às filiais e recebia os produtos explorados, foi tomado e comandado pelos revoltosos até Arumanduba. Perto dessa localidade, a marcha da embarcação foi reduzida e as luzes apagadas. Cezário ficou perto do comandante, chamado Jararaca, fazendo-lhe a seguinte ameaça: “Se perder a atracação, vai perder a cabeça”. Jararaca era bom mestre e não teve problema para atracar o Cidade de Almeirim no trapiche de Arumanduba. Imediatamente, Cezário desceu com o pessoal e prendeu Duca Neno, amarrando-o e colocando-o no porão do navio. Em seguida cortou os fios do telégrafo para evitar comunicação com Belém ou outro local. Os revoltosos quiseram saquear os depósitos de mercadoria, mas o coronel José Júlio chegou naquele momento e disse: “Sei que aqui tem muito cearense, mas sei também que aqui não tem ladrão”. Dito isso, o pessoal afastou-se e José Júlio autorizou que tirassem o que fosse preciso para a viagem até Belém. Cezário então removeu o povo para o navio Cidade de Alenquer, maior que o Cidade de Almeirim e foi iniciada a viagem para Belém, com Duca Neno preso, para ser entregue às autoridades. Após a saída dos revoltosos de Arumanduba, o telégrafo foi consertado e a notícia transmitida para Belém. Uma corveta da Marinha interceptou o navio e este foi levado escoltado ao porto da capital paraense. Cezário e os companheiros foram alojados nos quartéis e Duca Neno solto, pois José Júlio já havia providenciado a libertação. Em Jarí - 70 anos de história, o escritor Cristóvão Lins diz que a revolta foi o fato mais depreciativo de toda a história do Jarí e do próprio José Júlio de Andrade. O interessante, porém, é que, com poucas exceções, como Cezário, os revoltosos voltaram para o Jarí e foram recebidos pelo coronel, sem ressentimentos, pelo menos na aparência. Ajuste de contas no Paga-dívida Em meio ao muito que se fala do coronel José Júlio de Andrade, aparece o rigor com que tratava os seus empregados, na maioria das vezes ditado da rede esticada na ampla varanda do seu casarão em Arumanduba. Foram violências e arbitrariedades que seus capatazes praticaram, como narra o já falecido escritor e historiador santareno João Santos ao abordar o caso do trabalhador Jacinto Lopes, que caiu na besteira de pedir a conta ao coronel para visitar familiares no Ceará, sua terra natal. O episódio faz parte da história do extrativismo da balata no Médio Amazonas, região onde o produto alcançou o seu maior apogeu. Conta João Santos que, certo dia do ano de 1928, Jacinto Lopes, bom explorador de balata, produto este ainda pouco conhecido e que o coronel explorava sem competidores, pensou em dar uma volta no Ceará e pediu a conta. Fazer o que fez Jacinto nas propriedades de Zé Júlio era ato de autodestruição. Ninguém saía das terras do coronel levando saldo ou devendo conta. Para isto tinha o lugar de ajuste chamado Paga-dívida, onde o trabalhador que cometesse a ousadia de tentar deixar o trabalho escravo encontrava o fim nas balas de um rifle. Jacinto percebeu o erro cometido, mediu as conseqüências e resolveu fugir protegido pela escuridão da noite, subindo o Rio Paru. Armou-se de um rifle e terçado, colocou um pouco de farinha e outros mantimentos em um saco e partiu pensando chegar em Monte Alegre. O capiau trabalhara vários anos na extração do breu e castanha e por último na da balata. Conhecia os mistérios da mata como poucos e confiava nos índios do Alto Rio Paru. Sabia que a tentativa era um desafio, mas preferia aceitá-lo do que morrer no Paga-dívida nas mãos dos capatazes do coronel. Depois de vários dias de estafante caminhada, perseguido pelo verdugo Luiz Gomes e asseclas, enviados de Zé Júlio e moradores de Paraguai, no Rio Jari, de onde ocorrera a fuga, Jacinto alcançou a maloca dos índios apalaís, onde pernoitou, e pela madrugada, depois de orientado pelos nativos, partiu em direção ao Rio Maicuru, caminho mais fácil para se ir à cidade de Monte Alegre. Por volta do meio-dia, a turma de Luiz Gomes chegou à maloca indígena, todos armados de rifles e sofregamente procurando pelo cearense. Foram logo intimando os índios a revelar a presença do fugitivo, por onde andava e para onde tinha ido. Os índios do Paru conheciam perfeitamente os homens que chegaram à maloca. Eram os mesmos que roubavam seus produtos e impunham condições pesadas sem remuneração, que os escravizavam, fazendo o mesmo com trabalhadores. Encobriram a fuga de Jacinto, apontando a direção oposta, como se o cearense tivesse tomado o rumo do Amapá. A mentira dos apalaís salvou o fugitivo e contribuiu para que Monte Alegre, através dele, tomasse conhecimento da existência de grandes balatais em suas terras. Exausto e faminto, Jacinto alcançou o Rio Maicuru caminhando pelas suas margens, quando possível, e nadando em outras ocasiões. Chegou à outra maloca dos apalaís, próxima à foz do Maicuru. Na dura e penosa caminhada, foi encontrando exuberantes balatais. Os nativos lhe revelaram outros. Refazendo as forças, Jacinto começou a cortar algumas balateiras. Precisava levar alguma coisa para vender e conseguir dinheiro para chegar ao Ceará. Juntou alguns blocos de balata. Conseguiu uma canoa dos índios e partiu para Monte Alegre descendo o Rio Maicuru até encontrar o Rio Paituna. Por este chegou ao Curaçu, onde encontrou um comerciante, homem calmo, de falar macio, cearense também, chamado Henrique Vieira de Souza. Jacinto contou sua história ao dito comerciante e na companhia deste viajou para Monte Alegre, aonde chegou no dia 21 de setembro de 1928, levando os poucos blocos de balata. Assim, o nome de Jacinto Lopes ficou ligado para sempre à economia daquele município paraense. (Douglas Lima – RevistaAmazon View – Edição 84)

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